Eu começo essa crônica fazendo uma pergunta, caro leitor: O que é vida para você? Bom, você pode até pensar; “Nossa que pergunta tola.” Mas, isso tem atormentado os meus pensamentos desde o início da graduação em ciências biológicas. Como bióloga, eu sou uma profissional que estuda sobre a complexidade da vida em seus misteriosos aspectos.
Para alguns de vocês, biólogos ou não, é a capacidade do ser realizar um ciclo de vida completo: nascer, crescer, reproduzir e morrer. Já outros podem responder que se o coração está batendo, ele está vivo. Como também haverá aqueles que responderão, o coração pode bater, mas senão há atividade cerebral não está vivo. Além disso, também podem pensar que uma célula já é um ser vivo, como uma bactéria unicelular, que é capaz de realizar seu ciclo de vida, ou ainda, um espermatozoide. Então nesse caso, outras pessoas podem responder que o zigoto (resultado da fertilização do ovócito secundário e do espermatozóide1), já é um ser vivo. Essa teoria surgiu em 1827 a partir das observações do médico e biólogo russo, Karl Ernst von Baer, e até hoje é a mais forte argumentação da sociedade: a vida surge com a fecundação(2,3). Essas pessoas muitas vezes concordam que um embrião (até 8 semanas de gestação) é um ser vivo. Mas outra resposta que, comumente, eu escuto é de que somente quando passado ao estágio fetal é considerado um ser vivo, em virtude da formação do sistema nervoso central.
Isso se estiver optado por justificar dentro dos conceitos de vida em um contexto biológico. Não abordarei o conceito jurídico ou religioso; entretanto, por se tratarem de ciências entendo que estão intimamente relacionadas. Como bem afirma o autor Souza Neto (2017) “(...)todos os seres humanos já foram embriões, por isso a importância do tema pesquisado a defesa do direito primordial à vida (...)4” em seu artigo intitulado “Aborto uma afronta ao direito à vida”. O texto trata da vida em suas distintas concepções e, que servem para embasar o posicionamento do autor. Na concepção religiosa, pego emprestada a declaração do maior representante da Igreja Católica: “Defender a vida desde a concepção até a morte natural”5, afirmou o Papa Francisco em 2019 nas celebrações do Dia da Vida na Itália.
A temática tem sido motivo de discussões calorosas desde a era dos filósofos gregos, ou seja, não é nova. Mas tornou-se atual com a realização do aborto legal de uma menina de 10 anos após a constatação de estupro pelo tio6. A realização do aborto legal, ou seja, a interrupção da gravidez é permitida no Brasil em três casos. A mulher ou menina vítima de estupro que resulte em gravidez, tem direito de realizar o aborto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com a legislação não é necessário apresentar nenhum documento como boletim de ocorrência ou laudo médico, a palavra da mulher é valida para assegurar o atendimento. Outra situação descrita é quando há risco de vida a mulher, é permitida a interrupção da gravidez, sem a necessidade de autorização judicial. E por fim, em caso de anencefalia fetal, é necessária a comprovação da ausência (anencéfalo) ou malformação do cérebro. Essa é mais recente foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012 7.
Então, o que é vida? Eu simplesmente responderei: Não sei. Mas independente do conceito que você escolher utilizar por questões morais e éticas, eu não o julgarei e não o condenarei. Afinal, eu sou bióloga e não juíza. Diante do exposto, eu me pergunto: O simples ato de discordar de uma concepção/visão/conceito distinta da sua, justifica o julgamento e provê o direito de invadir a privacidade e a tomada de decisão de outra pessoa? Um dos maiores médicos da humanidade, na minha concepção, escreveu sabiamente “Não julguem e vocês não serão julgados” (Lucas 6:37).
O conceito de vida continuará a provocar discussões, seja no âmbito biológico, jurídico, social ou religioso. No entanto, caro leitor, a única coisa que realmente deveria ser dogmática é a criminalização, não apenas jurídica, mas cultural e social do estupro. Esse ato de violência contra as mulheres, a sociedade minimiza sua gravidade quando o comparamos as repercussões atribuídas ao conceito de vida. Mesmo sabendo das conseqüências desastrosas que o estupro causa, muitos ainda escolhem condenar a escolha da vítima. Com base na escolha pessoal de conceito de vida, isso se já tiver escolhido um! Já que nem a própria ciência se atreveu a dizer qual é o certo.
Referência
¹Moore, K.L. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008 p. 449.
² Von Baer, K.E., 1827. De ovi mammalium et hominis genesi. Vossil.
³ von Baer, K.E. and Sarton, G., 1931. The discovery of the mammalian egg and the foundation of modern embryology. Isis, 16(2), pp.315-377.
4Souza Neto, W.C. Aborto uma afronta ao direito à vida disponível em https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51154/aborto-uma-afronta-ao-direito-a-vida acessado em 29 de agosto de 2020.
5Disponível em https://conventodapenha.org.br/papa-francisco-defender-a-vida-desde-a-concepcao-ate-a-morte-natural/ acessado em 29 de agosto de 2020.
6Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/justica-autoriza-aborto-de-menina-de-10-anos-estuprada/ acessado em 29 de agosto de 2020
7 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 1940 Código Penal
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